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sábado, 19 de março de 2016

A AVÓ GRACINDA

Lembro-me sempre com saudade da avó Gracinda sentada na soleira da porta a descascar ervilhas para uma tigela que colocava no regaço. Na verdade, a avó Gracinda não era avó de ninguém e não se lhe conheciam parentes vivos nem mortos. Mas era assim chamada por toda a gente lá do Largo. A avó Gracinda morava numa casa de R/C e andar, vizinha de uma outra há muito desabitada e em adiantado estado de degradação. Segundo a avó Gracinda, “ali havia coisa do diabo”. À noite viam-se luzes dentro da casa e durante o dia, era possível ouvirem-se ruídos estranhos.
Durante um jogo de futebol um remate menos certeiro, projectou a bola para o interior daquela casa vazando uma das janelas cujo vidro há muito desaparecera. Corremos todos para a frente da casa e ali ficámos especados a olhar aguardando que o mais corajoso fosse buscar a bola. A avó Gracinda, como sempre sentada na soleira da sua porta, aconselhou: Deixem lá a bola miúdos, não entrem que aí há coisa do diabo. Nessa noite cada um recolheu a sua casa, mas ninguém relatou aos pais o episódio da bola que ficou no interior da casa onde ninguém entrava. Ninguém, é como quem diz, constava que os miúdos mais velhos se refugiavam lá dentro para fumar às escondidas e fazer sabe-se lá que outras tropelias…
A avó Gracinda evitava o mais possível passar em frente daquela casa, até que um dia, em perseguição do gato preto que lhe roubara o novelo de lã, viu cair-lhe uma telha mesmo à frente do nariz e que lhe foi acertar em cheio no pé esquerdo. A partir daí, era ver a avó Gracinda a mancar à frente e o gato preto a mancar atrás dela. Não que o fizesse por solidariedade, mas por ter ficado com uma das patas presa numa ratoeira. Mesmo a mancar, aquele gato seguia a avó por todo o lado, excepto à noite nas suas incursões à casa desabitada…
Contava-se que uma adolescente já espigadota um dia entrou naquela casa atrás do cão que para lá fugira. Esteve desaparecida durante todo o santo dia e, ao cair da tarde, quando saiu, vinha meio zonza e sem falar com ninguém. Nunca se soube o que por lá se passou, o certo é que passados nove meses, a rapariga deu à luz um bebé. Do cão, nunca mais se soube o paradeiro…
Ali havia seguramente coisa do diabo…
(Mais um texto que, depois de reescrito, saltou da gaveta)

2 comentários:

  1. E ainda bem que saltaram da gaveta estas memórias da infância. Gostei muito, Jorge. E até me lembrei de um que escrevi sobre a avó Micas, minha avó de verdade e de quem guardo muita saudade.

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    1. Obrigado Teresa. Bora lá a publicar esse texto sobre a avó Micas. Tenho a certeza que vou gostar.

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