Desligou
precipitadamente a TV premindo com uma força exagerada o botão do comando.
Levantou-se do cadeirão preferido para a leitura ou assistir a programas da TV
e foi sentar-se no lado mais sombrio da sala como era habitual sempre que, por
qualquer motivo, ficava acabrunhado já que a luz liga mais com a alegria e a
sombra com a tristeza. O problema que o atormentava, era o mesmo de sempre. Sabia
demais. Dominar o conhecimento das coisas, só por si, não constitui um problema,
antes denota um dom, uma qualidade. Pode ser fruto de curiosidade no bom
sentido e do domínio de uma ou várias ciências através de um estudo sério e
profundo. Mas o que dizer quando esse conhecimento se concentra na natureza
humana?
Quantas
pessoas não dariam tudo, passe o exagero, para serem portadoras de tal dom? Casos
haverá casos em que tal capacidade seria vantajosa e todos sabemos de alguns…
Mas ele estava farto. De bom grado abdicaria dessa competência. Assistir na TV a
declarações de inocência de políticos, ex-políticos, corruptos, ladrões,
assassinos e saber com toda a clareza que estão a mentir, causa aquela estranha
sensação de impotência e injustiça que faz doer não se sabe bem onde e que sempre
o deixava naquele estado de prostração. Não, de maneira nenhuma apreciava ser
portador de tão estranho dom. Ainda mais que não se aplicava à adivinhação dos
números de qualquer jogo de sorte. Consistia apenas em adivinhar, se é que se
pode usar o termo, o que se esconde por trás das palavras e dos atos do ser
humano.
A
tentativa de adivinhar o que os outros pensam é algo que toda a gente faz nas
mais variadas circunstâncias no intuito de melhorar a interacção nas relações humanas. Neste caso particular, não se pode confundir “adivinhar” com qualquer espécie
de telepatia. Será preferível falar-se em empatia, a simples arte de se colocar
no lugar dos outros na tentativa de melhor os compreender. No caso concreto, a
particularidade deste dom situa-se entre a telepatia e a empatia não chegando a
ser uma nem outra coisa.
Por mais que cismasse ali sentado no escuro, nenhuma luz lhe iluminava o pensamento entorpecido pelo esforço de tanto pensar. Até que vinda, do lado luminoso da sala, uma presença o desperta daquele torpor. A pequenita, o rebento mais novo da família, tinha-se aproximado e olhava-o em silêncio. Parecia querer dizer na sua linguagem e trejeitos infantis: não te preocupes, não penses mais nisso. Nós, os humanos, somos assim. Dizemos o que não sentimos e fazemos o que não queríamos fazer.
Esplanada à beira-mar
Esplanada à beira-mar
(Jorge Leal, in O homem que lia o pensamento)
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