Sempre me lembro da
avó Gracinda sentada na soleira da porta a descascar ervilhas para uma tigela no
regaço. Na verdade, a avó Gracinda não era avó de ninguém. Não se lhe conheciam
parentes vivos nem mortos. Mas era assim designada pelos miúdos e adultos lá do
Largo. A avó Gracinda morava numa casa de R/C e andar, vizinha de uma outra
casa semelhante só que esta estava desabitada há largos anos e em adiantado
estado de degradação. Segundo a avó Gracinda, “ali havia coisa do diabo”. À
noite viam-se luzes dentro de casa e durante todo o dia, era possível ouvirem-se
ruídos estranhos.
Durante um jogo de futebol
um chuto menos certeiro, projectou a bola para o interior daquela casa vazando
uma das janelas do R/C cujo vidro há muito desaparecera. Corremos para a frente
da casa e ali ficámos especados a olhar aguardando que o mais corajoso se
afoitasse a ir buscar a bola. A avó Gracinda, como sempre sentada na soleira da
sua porta, aconselhou: Deixem lá a bola, miúdos. Não entrem que aí há coisa do
diabo… Nessa noite cada um recolheu a casa mas ninguém relatou aos pais o
episódio da bola que ficou retida na casa onde ninguém entrava. Constava que os
miúdos mais velhos se refugiavam lá dentro para fumar às escondidas e fazer
sabe-se lá que outras tropelias…
A avó Gracinda evitava
o mais possível passar em frente daquela casa vizinha da sua. Um dia, em perseguição do gato preto que a seguia para todo o lado e que lhe roubara um novelo
de lã, quando passava pela casa viu cair-lhe uma telha mesmo à frente do nariz
e que lhe foi acertar em cheio no pé esquerdo. A partir daí, era ver a avó
Gracinda a mancar à frente e o gato preto a mancar atrás dela. Não que o fizesse
por solidariedade com a velha mas por ter ficado com uma das patas traseiras
presa numa ratoeira. Mesmo a mancar, aquele gato seguia a avó por todo o lado,
excepto à noite quando se recolhia à casa desabitada… Contava-se que uma
adolescente já espigadota que morara lá no Largo um dia entrou naquela casa atrás do
cão que para lá fugira. Esteve desaparecida durante todo o santo dia e, ao cair
da tarde, quando saiu, vinha meio zonza e sem falar. Nunca ninguém soube o que lá
se passou, o certo é que passados nove meses, a rapariga deu à luz o bebé mais
horroroso que se possa imaginar e que felizmente morreu à nascença. Do cão, nunca mais se soube o paradeiro… Ali havia seguramente coisa do diabo…
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